Sr Flake








Dia estranho. Os monstros estão comendo nozes atrás do armário. Vejo apenas as pontas prateadas de seus rabos aparecendo junto ao carpete, atrás das persianas. Prosseguir? O computador pifou. Perdi quase 90% dos meus pensamentos putrefatos, escritos durante as últimas duas semanas. 2 quilos de sardinha.

Não há água. Acordei vomitando. Tudo teve início ao final de um sonho, ou um pesadelo, não sei. Por quase duas horas sentado em espinhos, tomando vinho tinto, tentando escrever versinhos idiotas do tipo, “atirei um limãozinho na torre de Belém, deu no cravo, deu na rosa, deu no peito do meu bem”, até que deu nisso. Sou mesmo um pecador inveterado. Vislumbrei a saída, vi a luz, ouvi até o apito do trem; mas misteriosamente meu intestino me lançou novamente no limbo.

A Sra. X está na igreja do bairro, dando aulas de catequese pra criançada, acompanhada de seu filho Y, que usa uma camiseta azul tesoura com logotipo do "Crisma" nas costas. Ele precisa pôr aparelho nos dentes, diz ela, sorrindo às amigas, olhando rapidamente para os lados, sentada em um dos bancos, no fundo do salão, enquanto pensa em outra coisa, bordando panos de prato com fios de lã degradê.  Em casa, K, o filho mais novo, pula como um sapo pelo chão da sala, pedindo mais pipoca.

Adoro ficar observando o voo elegante dos urubus pela janela entreaberta do banheiro do escritório. Quanta sabedoria aeronáutica embarcada num bicho desses. Tiram a maior chinfra. Planam, fazem curvas para direita, para esquerda, sobem descem, enquanto observam toda a movimentação lá embaixo na cidade. Enquanto eu, só posso ficar pensando “será que vou morrer no domingo? Ou será que vou morrer no sábado? Você não sabe? Será que somos de ferro? Ou de barro? Será que ela está apenas fingindo? E só me telefonou para tirar um sarro? Acabou o papel.

Tudo poderia, então, ficar como está. Não faz a menor diferença agora.

Sinto-me sufocado, como a Virgem Maria, adentrando aos poucos num daqueles capítulos quentes e abafados do texto bíblico.

No elevador, na hora de ir embora, a ascensorista pergunta: “em que andar o senhor vai?”. Odeio que me chamem de senhor. O senhor está lá no céu, poderia lhe responder, com uma pitada de ironia no tom de voz; mas apenas olho bem dentro dos seus olhos tímidos, e respondo: “...putérreo, minha senhora! Rápido! Putérreo!”.

Noite escura. Sinistra por sinal, e silenciosa demais para o meu bom gosto.

Vejo-me no meio de uma estrada de terra, um caminho estreito e tortuoso, que se perde diante de uma floresta densa e misteriosa. Estou acompanhado de A, um amigo de infância. Não sei se devo prosseguir por aquele caminho e adentrar a Escuridão. O amigo insiste que devemos seguir, e tenta me convencer de que não temos outra alternativa. Estou fedendo. Dona Leda diz que não há água. Não posso tomar banho. Telefone toca. Grilos cantam a um canto no chão do banheiro. Sujo assim, não sei se Suzana ainda vai querer sorrir para mim, deitar em meus cabelos de mendigo seu olhar doce como o mel. Dona Leda não anda, marcha, pisa. 

04h00. O cachorro menor late do lado esquerdo. Abro a janela. Choveu um pouco durante a madrugada. Passo a mão pelos cabelos grisalhos, sentindo o cheiro da terra úmida e coço a bunda usando apenas dois dedos. Não consigo dormir. 05h00. Apanho a bomba de inseticida sobre o guarda-roupa e caço o pequeno inseto, que passa voando de um lado ao outro do quarto, tocando seu violino desafinado, bem perto do meu rosto. Talvez fosse melhor eu colocar tudo em pratos limpos, ou um pouco de cimento nos ouvidos e nos olhos... 


Não é fácil ouvir e escrever tanta abobrinha por linhas tortas. Não entendo sobre nada. Não domino nenhum assunto específico. Não consigo sequer decorar o alfabeto ou a conjugação do verbo to be, a tabuada dos dois. Não que eu queira convencer alguém de que tenha um dia agitado e interessante, como aquele amigo virtual que está sempre invisível, e que vive entrando e saindo em restaurantes lá em Londres, experimentando vinhos caros e sobremesas das mais finas e saborosas. Não. Muito pelo contrário, meu dia a dia é demasiadamente lento e abafado. Vivo preso em elevadores, em filas de banco, no trânsito urbano, pendurado em ônibus sujos e lotados, e com as janelas fechadas. Apenas tento de todas as maneiras suportar ISSO, assistindo outro filme, vendo os fatos sob outros ângulos através da janela. O que é pior. Por isso, só quero cagar para esse sistema cruel e insano. Há uma barata morrendo atrás do vaso sanitário, preciso salvá-la. Isso é vida também. Não demoro, já volto...  

Então, nunca me confunda com o que escrevo. Dia estranho. Parece que vai chover alguma coisa preta agora. O Telefone toca. Vejo dois ladrões magros carregando baldes com mudas de babosa, correndo na rua de trás. Observo-os com mais nitidez quando passam defronte ao portão azul.

Suzana não veio. Antes, um franguinho esquálido, de cabelos oxigenados e dedos finos, cansados de dechavar a erva. Na curva em U, outro ladrão talha um estilingue em uma forquilha de goiabeira. Nuvens cinzas se aproximam lentamente como caravelas de Cabral. Sol pálido.

Voltei a pintar no banheiro, e quando fui mijar, notei que tinha dois pintos, só que um saiu voando e subiu pelo elevador de serviço. Durante quinze minutos o aguardei com um sorriso geométrico no rosto e a coleira na mão, observando calmamente a progressão de andares no painel luminoso.

Às vezes tenho a exata noção do quanto estou me enganando, consumindo quinquilharias, ouvindo rock’n roll, ou mesmo usando essa droga computador. E isso  dói, me assusta rapidamente. 

Tudo é em vão. Viver é assim, num mundo de isopor, prestando atenção em detalhes e na forma das COISAS, é um puta engano. Entretanto, negar toda essa percepção, esse estar presente aqui e agora, inserido nessa realidade, neste exato momento, tempo e espaço, também me sugere uma baita ilusão, ou pior ainda. Imagino: sinto cheiro de merda de gato, e digo para mim mesmo: “ilusão, meu caro. Tudo ilusão”. E, ploft! - meto o pé na merda e saio mancando. Ki-Bosta, uma nova forma de sorve-te. Penso então em patentear meus pensamentos, mas já não sou mais uma pessoa espontânea de fato. O que aparece é apenas a casca da ferida do omelete.

Quando a porta se abre, porém, do nada, surge apenas aquela lésbica sapatona que trabalha no 1310. Ou seria a Sra. Sapatinhas? Digo Sapatinhas por que, na verdade, a figura deve ter apenas 1,45 m de altura. Está sempre acompanhada de uma senhora feia, com cara de alho-poró, que apesar de não demonstrar qualquer expressão, parece rir a valer por dentro, pensando sobre algo que estiveram conversando momentos antes no interior do elevador.

Para minha surpresa, porém, nesta tarde, ao passar por mim, automaticamente a Sra. Sapatinhas me cumprimentou. Ela nunca responde aos meus cumprimentos. Por isso, tenho vontade de lhe responder: “Ora, antes que eu me esqueça, vai se foder!”.

Meu Deus. Descobri que não tenho saco. Apenas pinto o tempo todo, para esquecer o quão infeliz me criaste. Tenho a impressão de estar cavando minha própria sepultura com o dedo mindinho.




                                       

Sabe quando a sua vida dá um 360 em sentido anti-horário (?), e em seguida um 180 para frente? Ou quando você tem aquela estranha sensação de que puxaram o seu tapete, e que o mundo a seus pés desabou? Pois foi exatamente isso o que me aconteceu naquele 26 de março. Nem me lembro mais ao certo o ano; 2009 talvez? Não sei.

No começo foi muito difícil. Acordava no meio da noite, num barraco na periferia de Hortolândia, à beira de um matagal cheio de tarântulas, e, deitado na minha caminha de criança, ficava ouvindo na escuridão a voz do pequeno K me chamando. Olhava para os lados no quarto escuro e via apenas a silhueta de dois malucos dormindo e roncando em suas camas, um de cada lado. Em seguida enfiava a cabeça no travesseiro, e derramava lágrimas em silêncio. Foi muito difícil assimilar tudo aquilo em tão pouco tempo, por que, além de um corpo material, descobri que experimento também um corpo sutil, que vulgarmente chamam de Espírito, ou consciência, e que outros ainda chamam de  alma ou mente. É só questão de optar. Sistema bíblico ou límbico. Você escolhe.

Mas agora tudo passou. O ônibus 698 encosta na plataforma 2 e as pessoas na fila se movem. O Tempo é Senhor de todos os males. O ferimento que havia em meu peito transforma-se em segundos em duas pequenas cicatrizes de borboleta, e eu já nem sinto mais aquela dor tetânica, mas apenas um pequeno desconforto, como se não estivesse conseguindo acessar algum período da minha vida, engatar uma segunda, a terceira, e ficasse o tempo todo andando em primeira. As pessoas me empurram o tempo todo. Que tédio meteorológico (!)

Muitas vezes, quando estou na kit, me vejo absorto, parado no meio do quarto, segurando distraído algum pequeno objeto nas mãos, um clip de papel, um cotonete, ou uma tampinha de caneta, pensando em nada, tentando recompor parte da história da minha própria vida, procurando algum sentido para essa eterna existência. Um motivo para me sentir em paz. A mosca parte então num vôo mágico e veloz, do encosto da cadeira em direção à lâmpada apagada no teto. As Baratas Me Amam.

Nunca consigo chegar a uma conclusão satisfatória. Estou fugindo dos meus próprios pensamentos, que tanto me aprisionam no quintal, apertando desesperadamente o botão “T” de térreo. Vou até o mercado municipal adquirir algum objeto que me faça feliz por alguns instantes e já volto.


Mas tudo me parece ilusório e em vão agora. Talvez eu passe pelo posto de gasolina e compre apenas um litro e volte.

Vejo as pessoas entrando na lanchonete Pão de Queijo Mineiro. Hoje cedo saí de casa vestido todo de preto, inclusive a cueca e as meias. Talvez assim não me vejam, sentado em uma das mesas, no fundo do salão, comendo um pedaço de bolo de milho com cobertura de doce de leite, usando esse vestido preto que era da minha irmã. Atrás de cada disfarce todo mundo é um “Eu” em potencial, menos eu. O bolo parece bom. Ele entra em mim pelo lado esquerdo e se perde. Algumas pessoas são embaçadas; atrasam o meu lado pensando negativamente. Cuspo para longe um fiapo de milho, que, atravessando todo o salão da lanchonete, girando no ar como um microbalabarista, gruda na porta da cozinha. A realidade ilusória é o que você pensa. Somos pura intenção, invenção, injeção. Porém, não pense que isso seja tudo. Aliás, isso não é nada, mas apenas O que Logo se Desfaz (my OLD man). Contudo, o que de fato é, ou seja, o que permanece o tempo todo, nós nunca chegaremos a saber o que venha a ser. E eu também não sei nada sobre isso. Apenas falo com a boca cheia o que consigo decodificar em mim. E, assim como você, sou apenas um aspecto, que não come ninguém há duas semanas. Então, tudo isso que escrevo é apenas um detalhe, um vômito, a percepção de “um” dos aspectos. Existem milhões de outros aspectos; já existiram milhares de outros aspectos, e, muito provavelmente, ainda existirão muitos outros aspectos. E apenas nós, Aspectos Humanos é que ficamos assim tagarelando como papagaio, escrevendo, anotando, registrando tudo ou parte, ou o que conseguimos captar, achando tratar-se, ISSO, de alguma realidade afirmativa. Eu, pelo contrário, não afirmo nada; apenas descrevo o que consigo ver com os olhos fechados. Mas existem ainda outras formas de vida que também “percebem” alguma coisa; só que estas nada registram. Por isso, muitas vezes, fico observando os pássaros, os gatos, cachorros, peixes-beta, moscas, minhocas, lagartixas, baratas, hortênsias, mato, azaleias, água, vento, Sol e Mar, só para ver se consigo entender o que estão percebendo ten tando riscar fosphoros


Agora as pessoas estão saindo da lanchonete. Todo mundo é legal. A senhora de mini-saia branca transparente e tamancos de madeira, o menino magro de cabelos raspados e olhar giratório e manchas na face, que a acompanha, também. Falam sobre passar na casa de uma tia Laura e apanhar um envelope com as cartinhas. Eu sempre olho bem dentro de cada uma das pessoas que se aproximam de mim. Eu sempre vejo um pouco de mim ali refletido; e elas me olham e se encontram em mim também. Somos todos a mesma pessoa. Cada um é um, e só existe Um. Eu não queria estar envelhecendo, mas percebo que estou. Há um buraco na parede atrás de mim. Vou até o banheiro e volto em cinco minutos. Algumas pessoas, carregando pacotes, estão saindo da lanchonete, algumas ainda estão na fila do caixa, e outras estão entrando, amarrando o cadarço dos sapatos junto ao degrau na porta de entrada. Do outro lado da rua, uma menina branca como uma boneca de porcelana, vomita um líquido espesso de tom violáceo cheio de carocinhos junto ao um poste, enquanto a mãe, ou apenas a senhora que a acompanha, gesticula nervosamente, olhando repetidamente para os lados, sem nada ver, como um pardal em meio à multidão. O helicóptero da polícia sobrevoa a praça, espantando os pombos. Sinto o cheiro de algo podre no ar. O cheiro parece vir de um tempo passado não muito distante de onde me encontro. Parece enxofre, ou o cheiro de peixe frito, sardinha talvez; mas não vejo ninguém por perto fritando peixes hoje. Talvez o cheiro já estivesse ali. Já próximo ao semáforo, vejo uma pomba ferida caída num canto da calçada. Penso em pegá-la e colocar dentro da minha mochila e levá-la para a kit para ver o que é. Talvez não seja uma pomba de verdade (?), mas apenas algum artefato natural de espionagem, um drone de alguma outra dimensão. Parece mesmo haver algo preso em uma de suas perninhas vermelhas. Essa pomba não estava aí antes quando eu passei. O helicóptero retorna, agora num sobrevoo; melhor eu deixar a pombinha quieta em seu lugar e dar no pé. Eu não tenho nada a ver com isso. Ou tenho?




No supermercado Pão de Açúcar, topei com uma senhora magrinha, com o corpo esguio como uma garrafa de Coca-Cola, dessas de 300 ml. Tinha os cabelos brancos e ressecados. Notei também que tinha uma mancha azulada em um dos tornozelos. Saindo de trás das prateleiras de miojo, tive a impressão de ouvi-la comentando em off com sua acompanhante – uma outra senhora, essa um pouco mais jovem (ou menos velha) e de cabelos loiros e sujos de bosta de pombo, e que carregava uma bolsa de vime com detalhes pintados com esmalte colorido: “Se fosse uma cobra tinha me mordido” – ao mesmo tempo em que dava umas apalpadelas em alguns mamões papaya, como se escolhesse um mais maduro, ou mais verde, não sei. Se eu me encontrasse efetivamente em uma outra dimensão naquele instante, e ela não pudesse me ouvir, gostaria de ter-lhe dito: “E caso eu fosse uma minhoca, minha senhora, a teria mordido”. Mas a outra, de cabelos brancos, me pareceu muito real. Assim, tranquei meus sentimentos e continuei recolhendo algumas cebolas e, mais adiante, alguns inhames para cozinhar no almoço – minha Sopa de Pedras.

Na saída, dobrando para a esquerda, em direção à esquina da Barreto Leme com a Francisco Glicério, topei com outra senhora, um pouco mais gorda e com aspecto daqueles ponteiros de árvores de Natal antigas. Sabe aqueles pimpões de vidro casquinha, espelhados e coloridos, em forma de balão chineizinho um pouco mais alongado? Essa trazia um cocker spanish preso a uma guia curta. O cão tinha uma bola inchada embaixo da barriga, algo arroxeado como um saco rendido. Pensei que deveria ter alguma doença. Mas o estranho é que era o cão que puxava a mulher com força para frente, ou ela é que era muito fraca e o cão não suportava passear em sua companhia. Observei que usava óculos com moldura de tartaruga, o que lhe dava um aspecto de joaninha de jardim.

Passando por eles e afastando alguns passos, ainda pude ouvi-la ralhando com o pobre animal: “Pára de cagar , Fred!”. Ah, é esse então o nome do cachorro, pensei. Na verdade eu tivera a impressão, quando cruzara com eles, que o cão tinha cara de Spok, aquele do seriado Jornada nas Estrelas, o antigo, e não esse atual que está passando nos cinemas. Mais adiante, já perto da banca de jornal do Dráuzio, atravessei na faixa de pedestres, e aproximei-me de um vendedor ambulante, que expunha alguns CDs piratas na calçada, em frente à agência do Banco do Brasil, embaixo do Edifício Itaguaçu. Que “mardito!”. Ele me olhou como se eu fosse um yuppi, mas os CDs dele estavam jogados no chão, tomando sol.

Quando cheguei a kit, ao acender a luz, a mosca rapidamente mudou de endereço.

Estou ficando enjoado. Faz quase 20 anos que tudo isso acontece e Aquilo existe. Não consigo mais escrever, porque não consigo ler direito o que escrevo, tamanho é o asco que sinto por essa atividade alienante, que afeta os tolos e afasta os homens bons do seu viver sagrado. Creio que apenas escrevo como uma tentativa fútil de transportar toda a realidade externa para algum local em minha mente, onde eu possa observá-la melhor, e assim, tentar compreendê-la.

Entretanto, já estou farto de ficar atribuindo significado às coisas, transportando tudo e todos em miniatura para determinado ponto no vácuo, e depois apenas depositar larvas em uma página. Acho um grande erro viver assim, atribuindo sentido a tudo e a todos. Certamente deve haver algum sentido nessa realidade percebida, mas não creio que possa eu atribuí-lo com precisão e imparcialidade.

Coçando o Nariz desce as escadas comendo chocolate Garoto sem fazer barulho para não ser notado. Todo mundo parece desconfiado hoje. As pessoas mais educadas parecem as mais falsas e apressadas nessa manhã fria, em que o vento assobia junto aos aparelhos de ar-condicionando, dobrando as esquinas, contornando os prédios. Não suporto pessoas com pose e aparência de manequim. Acho todo mundo um saco. Eu mesmo sou um saco em mim mesmo. Contudo, diferentemente dos demais, evito a todo custo representar algum papel falso na data de hoje, preferindo ser eu mesmo, azedo como um limão, HOJE, mas nunca parecido com um morango holográfico. Uns dizem que está frio lá fora, outros se deslocam de forma nervosa pelos corredores do condomínio ou do escritório, pisando como elefantes no carpete, como se dessem patadas. Alguns me chamam de “Chevrolet Cara de Cavalo”, e me olham como se desconfiassem de algo, como se temessem que eu estivesse sabendo de algo (que, na verdade, não me interessa um mínimo). Um mimo. Um riacho de mijo fluindo no âmago de cada um desses Penas Molhadas. Todos fogem em silêncio de si mesmo, preferindo arrebentar-se na superfície espelhada atrás da mesa, acomodando da melhor forma possível a bunda em cadeiras confortáveis, estofadas e giratórias.

Não há nada que eu possa fazer; apenas gastar meu tempo e dinheiro. Fujo então da pequena jaula de Eucatex e dou algumas voltas no quarteirão, olhando vitrines, evitando consumir qualquer coisa, açúcar, imagens, informação, objetos. Mas logo tenho que voltar ao escritório e carimbar em silêncio mais alguns documentos. As correntes são curtas demais.

Assim, novamente me recolho. 30 anos preso numa sala arejada, organizando papéis, ouvindo reclamações e opiniões das mais absurdas, não concordando com nada. É tudo mentira o que se diz. Apenas o ponto de vista de alguém, que deseja a todo custo impor o seu DNA mental a outrem, e assim prevalecer, sobressair-se. Não se percebe a verdade. Apenas duvidamos de tudo; enquanto alguns fingem saber das coisas, serem os donos da razão, da verdade, e até conseguem convencer alguns outros tolos de que realmente sabem alguma coisa, que têm algo a dizer. Recheiam então seus discursos com termos técnicos, palavras bonitas, estranhas, incomuns, como se falar fosse vomitar bolachas Trakinas. Quem é bom já nasce feito no dia amarelo. Quem é ruim também. Que merda. Foi mal.